Estado viu participação nas lavouras da planta encolherem em ritmo acelerado nos últimos anos; produtos tradicionais, como cachaça e rapadura, foram impactados
Ceará já foi o 7º maior produtor de cana-de-açúcar do Brasil, mas hoje em dia fica mais perto das últimas posições
O Ceará foi o estado do Nordeste que menos produziu e colheu cana-de-açúcar em 2023. O resultado de produção vem caindo nos últimos 50 anos e se agravou nas últimas duas décadas.
Os dados foram divulgados pela Produção Agrícola Municipal (PAM), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e apontam que a produção da planta no território cearense minguou.
No ano passado, o Ceará tinha mais de 1,07 milhão de hectares destinados para lavouras temporárias. Para o IBGE, cana-de-açúcar, mamona e macaxeira, por exemplo, são culturas temporárias de longa duração, cujo ciclo vegetativo costuma ultrapassar um ano. Neste caso, o instituto considera o que foi plantado e colhido dentro do chamado “ano civil”, correspondente a 12 meses
Do total desse tipo de lavoura cearense, somente 8.725 hectares (0,8%) foram destinados ao plantio e colheita de cana-de-açúcar, colocando o Estado na 20ª posição nacional. Nesse perímetro, foram colhidas 556.369 toneladas da planta, apenas a 19ª maior produção nacional.
Nenhum outro estado do Nordeste teve produção tão baixa. O Piauí, território vizinho ao cearense, é o nordestino com a segunda menor colheita de cana-de-açúcar, mas o plantio e a geração, em toneladas, são mais do que o dobro do que os do Ceará.
Na comparação com 50 anos atrás, o tombo do Estado é ainda maior. Desde 1974, quando o IBGE começou a divulgar os dados da PAM, o Ceará tem sido destaque negativo na produção da planta. Naquele ano, o território cearense era o quarto maior produtor do Nordeste e o 7º maior do Brasil. Há exatos 50 anos, o Estado havia produzido 3,12 milhões de toneladas de cana-de-açúcar.
Desde então, ano após ano, o Ceará declinou na produção de cana-de-açúcar. Em 2015, o Estado deixou de produzir milhões de toneladas de cana para colher somente milhares.
Que razões podem explicar esse declínio acentuado daquela que já foi a principal atividade econômica do Brasil no período colonial, entre os séculos XVI e XVII? Especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste elencam fatores que evidenciam o cenário.
DA CANA CAIANA À CANA ROXA: DECLÍNIO NO PLANTIO ASSOCIADO AO CLIMA E ÀS NOVAS ATIVIDADES
Assim como no período colonial, quando somente as capitanias hereditárias de São Vicente (atual território de São Paulo) e Pernambuco prosperaram na produção da cana-de-açúcar no País, na atualidade as questões climáticas continuam tendo um impacto significativo.
Ricardo Elesbão, chefe de pesquisa da Embrapa Territórios e Alimentos, aponta que o Ceará, embora já tenha tido destaque no plantio e colheita da cana, vivencia um período ainda mais acentuado referente às altas temperaturas e baixo índice de chuvas.
Nas sub-regiões do Nordeste (Agreste, Meio-Norte, Sertão e Zona da Mata), os estados que prosperam no cultivo da planta foram aqueles entrecortados pela Zona da Mata. Essa área compreende as zonas litorâneas que se estendem do Rio Grande do Norte à Bahia. O Ceará, por sua vez, é o único território da região 100% inserido dentro do Sertão.
“O Ceará tem boa parte do território submetido a um regime semiárido, com secas muito prolongadas, em especial a falta de água numa cultura que em alguns locais não é irrigada, diferente de outros estados que cultivam na Zona da Mata, que recebe chuvas mais consistentes e regulares”, explica.
Outro ponto destacado pelo pesquisador é que outros cultivos agropecuários no Ceará, a exemplo da cultura do caju e da carnaúba, onde o Estado mantém a liderança nacional na produção, representam maior competitividade frente à cana-de-açúcar.
“No caso do Ceará, também tem a própria questão dos outros cultivos, as quais são mais competitivas, além do que, considerando os principais usos, álcool e açúcar, a competitividade do Ceará em relação a outros estados é bem menor. O próprio Nordeste mesmo, em relação a outros locais do país, sente essa dificuldade hoje na produção de cana”, ressalta Elesbão.
A situação também é comprovada pela pesquisa do IBGE de 2023. Sozinho, São Paulo foi responsável por 54,5% de toda a área plantada e colhida de cana-de-açúcar no ano passado nacionalmente. Quando é considerado o volume colhido, o território paulista corresponde a 56,1% do total do País. O Estado é o maior produtor brasileiro.
Pernambuco, que no passado já foi o segundo maior produtor, fica somente na 7ª posição no Brasil. Logo à frente aparece Alagoas como a maior produção nordestina de cana. Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul e Paraná, respectivamente, além de São Paulo, ficam à frente de Pernambuco e Alagoas.
A CANA NO CEARÁ DEIXOU DE VINGAR
Segundo Amílcar Silveira, presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Ceará (Faec), o Cariri cearense, no passado, já teve destaque importante na produção de cana-de-açúcar. Agricultores de pequeno porte eram quem faziam esse cultivo, principalmente na cidade de Barbalha.
Com o tempo, porém, as legislações trabalhistas precisaram ser cumpridas, e diversas irregularidades nesses plantios tiveram de ser combatidos, levando, por muitas vezes, ao fim dessa produção em diversos canaviais.
“Eles eram pequenos produtores que tinham dificuldades de EPI, dificuldades de melhor qualificar o pessoal, porque é meio que uma atividade extrativista deles. (similar à extração do pó da carnaúba). Quando você coloca todas as legislações trabalhistas para pequenos produtores, é insustentável. Não que esteja certo ou errado, mas estou falando que tem que ter uma conscientização”, pontua.
Também reduziu a produção de cana no Ceará a chegada de tecnologias no campo que mecanizaram a produção. O presidente da Faec ressalta que os “pequenos produtores não tinham condição de mecanizar, e a atividade já não justificava”, e foram priorizados maiores cultivos, geralmente fora do Estado.
PINGA: A CANA VIRANDO AGUARDENTE
Bebida alcoólica genuinamente brasileira, a cachaça é difundida em todo o território nacional e apreciada ao redor do mundo. A matéria-prima dela é a cana-de-açúcar, das mais diferentes espécies (principalmente a caiana), e boa parte da produção da planta hoje no Ceará é destinada a fabricar o líquido.
“A cana-de-açúcar se concentra muito mais na produção de cachaças. Existe um polo importante em Viçosa do Ceará, inclusive lá tem indicação geográfica. A cachaça de Viçosa é um polo importante, mas temos enfrentado dificuldades. No passado também existiu a produção de rapaduras, mas tem diminuído muito o consumo”, explana Amílcar Silveira.
A indicação geográfica a qual o presidente da Faec se refere foi a concedida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), em forma de Indicação de Procedência (IP). Em abril deste ano, Viçosa do Ceará ganhou a distinção.
Caio Carvalho, presidente da Associação dos Produtores de Cachaça de Viçosa do Ceará (Apcvic), esclarece o que significa a indicação geográfica, que equiparou o município cearense a cidades como Paraty (RJ), reconhecida pela disseminação da bebida internacionalmente, e Salinas (MG), que produz cachaças premiadas no Brasil e no mundo
Alambique de cachaça artesanal. Viçosa do Ceará se tornou a capital da cachaça no Ceará após sanção do governador Elmano de Freitas (PT) em janeiro de 2023
É uma região que tem um produto como uma qualidade diferenciada dos demais. Existiam poucas no Brasil, como Salinas (MG) e Paraty (RJ), e a terceira foi Viçosa do Ceará dizendo que a cachaça do município tem uma qualidade destacada. Isso existe muito no vinho, no champanhe. O objetivo principal da associação é gerir a indicação geográfica de Viçosa, que hoje já tem”.Caio Carvalho
Presidente da Apcvic
Conforme Amílcar Silveira, “é importante resgatar e agregar valor” com a produção de cana, como acontece em estados como Minas Gerais por meio das indicações geográficas.
“Acho que a gente pode tentar melhorar a produção de cana. Em Minas Gerais, produz-se muita cachaça. A grande coisa que acontece em Minas Gerais é que tem um polo grande de cana. O litro de álcool vai custar R$ 5, e um litro de cachaça artesanal custa pelo menos R$ 30. Dá renda ao produtor, agrega valor. Ter identificação geográfica ajuda nisso, e as nossas cachaças foram premiadas. Tem cachaça custando R$ 70 por 750 ml”, vislumbra
CACHAÇA É SIGNIFICATIVA, MAS AINDA LONGE DO IDEAL PARA A CANA
A importância da indicação geográfica de Viçosa chega em um momento de declínio do plantio da cana e do consequente processamento da planta. Caio Carvalho relembra que o Ceará já teve destaque na produção da cachaça, principalmente por meio da cearense Ypióca, que foi vendida em 2012 para a britânica Diageo, dona de marcas como o uísque Johnnie Walker.
A Ypióca tinha uma produção própria de cana, só que ela foi perdendo os canaviais, às vezes até por força climática. Eles foram cada vez mais terceirizando a produção. Onde tinham as usinas da Ypióca, que eram realmente as maiores plantações, foram acabando, e uma região que tinha uma produção muito forte de cana era na região de Redenção e Acarape, mas os alambiques foram se acabando. Foram deixando de lado o plantio da cana”.Caio Carvalho
Presidente da Apcvic
Até mesmo os tradicionais engenhos de rapadura caíram consideravelmente: “Eles eram tradicionais, mas pela dificuldade, custo e falta de mão de obra, foram acabando, viraram a maioria pontos turísticos”, acrescenta Caio Carvalho
“Teve um período muito difícil com a seca muito forte no Nordeste, na década de 2010, que fez com que ficasse inviável a cana. Manter os canaviais, fazer a irrigação, foi difícil. A Diageo comprou a Ypióca e terceirizaram a produção. Basicamente, eles só rotulam”, observa.
A associação de produtores de Viçosa fez um “trabalho de formiguinha” para reacender a importância cultural e econômica da cachaça na região.
“Existia uma fama na região da produção de qualidade que tinha lá a Serra da Ibiapaba, mas também tinha a falta de profissionalismo, o mercado informal estava fazendo com que a cachaça tivesse um valor agregado muito baixo. Todos esses fatores fizeram com que a produção de cana diminuísse, trocada por outras culturas ou não ser mais interessante”, define o presidente da Apcvic.
Embora a distinção recebida por Viçosa do Ceará seja uma forma interessante de valorizar a cultura da cana, Ricardo Elesbão defende que os derivados da cana, como cachaça, etanol e rapadura, “não ocupam a produção de cana tanto quanto o açúcar”.
O especialista, que ainda é um dos representantes da Embrapa na Câmara Setorial da Cadeia Produtiva da Cachaça do Ministério da Agricultura e Pecuária, projeta que dificilmente o Ceará deva reverter a queda acentuada no plantio e na colheita.
Não é o fato de você ter uma cachaça reconhecida com uma indicação geográfica que vai fazer aumentar a produção. Essa cachaça acaba adquirindo mais valor, reconhecimento, inserção no mercado. O selo em si não garante aumento de mercado, mas dá visibilidade e evidencia a própria cidade, pela tradição que tem de produção, mas não obrigatoriamente impacta na escala de produção”.Ricardo Elesbão
Chefe da Embrapa Alimentos e Territórios